A rainha da noite — misticismo e poder em A flauta magica de Mozart

Composta para o teatro popular (vaudeville), dirigido por Schikaneder, A Flauta Mágica é uma das últimas obras de Mozart, escrita no período de maturidade do compositor, também de bastante instabilidade financeira. O libreto, baseado numa imensa variedade de fontes, mistura elementos da filosofia iluminista e da mística maçônica.

Alberto Luiz
6 min readMay 30, 2024

O libreto de “A Flauta Mágica” (Die Zauberflöte), foi elaborado em meados do século XVIII, um período de intensa efervescência cultural. À medida que vamos tendo contato com a obra de Emanuel Schikaneder e Wolfgang Amadeus Mozart, percebemos os dois lastros que sustentam os dois atos de “A Flauta Mágica”: o iluminismo e a mística maçônica. Afinal, ambos os autores da ópera eram irmãos fraternos de uma loja maçônica em Viena, Áustria. Essas informações são importantes para compreender um pouco da estrutura simbólica da obra. Ambos os autores de “A Flauta Mágica” pertenciam a uma loja maçônica de tradição egípcia que praticava o rito de Mênfis-Misraim¹, originado pelo místico e alquimista Alexander, conde de Cagliostro². Os ritos dedicavam-se ao estudo do simbolismo esotérico da Maçonaria, gnose, cabala e até mesmo do hermetismo e do ocultismo. Esse conjunto de conhecimentos demarca de forma bastante clara a inspiração simbólica da obra em questão.

Aparentemente, o enredo de “A Flauta Mágica” é bastante simples, dividido em dois atos. No primeiro ato, somos conduzidos à busca do príncipe Tamino, que é incumbido pela Rainha da Noite de resgatar a princesa Pamina, sequestrada pelo sacerdote Sarastro. Com a ajuda de Papageno, Tamino vai em busca de Pamina. Com o desenrolar da ópera, conhecemos as verdadeiras intenções de Sarastro e da Rainha da Noite. O sábio Sarastro levou a princesa na tentativa de protegê-la da influência maligna de sua mãe, e a Rainha da Noite se revela como a grande antagonista, forçando a filha a tentar matar Sarastro, a quem ela acusa de roubar dela o círculo solar. Por fim, Papageno encontra uma companheira, e o casal Tamino e Pamina passa por uma série de testes para alcançar a plenitude e a sabedoria.

A aparente simplicidade do enredo de “A Flauta Mágica” oculta seu aspecto simbólico, que se revela à medida que a história apresenta seus personagens e sua forma de construir uma narrativa que concilia os ideais iluministas e a mística da maçonaria. Ou seja, a ópera oferece duas experiências distintas para o público: ela é um espetáculo cômico, cheio de momentos de humor e lirismo, mas também, para aqueles que carregam algum conhecimento de seus símbolos, descreve outros caminhos propostos pelos autores. Não é à toa que a ópera tem uma centena de leituras, interpretações e análises.

“É suficiente que a multidão tenha prazer em ver o espetáculo; mas, ao mesmo tempo, seu significado elevado não vai escapar aos iniciados.”Goethe,

Diana Damrau, como a Rainha da noite, em adaptação de A flauta magica.

A Rainha da Noite, sem dúvida, é a personagem mais icônica de “A Flauta Mágica”. A personagem aparece com duas árias, a primeira cantada no encontro da Rainha com o recém-chegado Tamino, “O zittre nicht, mein lieber Sohn” (Oh, não trema, meu querido filho), onde ela pede ao príncipe que resgate sua filha, que tinha sido levada por Sarastro. A primeira face da Rainha é terna, uma mãe sofrendo a ausência de sua filha. Reflete a delicadeza e a melancolia que são próprias da imagem da noite, representada na arte e na cultura clássica. O apelo da mãe comove o príncipe a aceitar a missão de salvar a princesa, que futuramente seria sua esposa.

Oh, filho meu! Não temas, não!
És inocente, sábio, bom
Nasceste para ser guerreiro forte
Ajude-me, eu choro a minha sorte!
Eu vivo triste e desolada,
Não tenho mais nenhuma paz…
Pamina foi-me arrancada!
Aconteceu assim, em um zás trás!
Foi ele! Zarastro, Quem a levou!

A segunda ária, “Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen” (A vingança do inferno ferve em meu coração), é o momento em que a personagem revela sua outra face, a face colérica, onde a fúria e a violência irão eclodir em um juramento feroz, incumbindo a própria filha de matar Sarastro. Caso sua vontade não seja cumprida, a mãe ameaça a filha com a rejeição. A Rainha se distancia, confiando à filha uma missão dupla: eliminar Sarastro, que nesse momento representa a porta para uma mudança na ordem natural que a Rainha não desejava permitir. Temos que lembrar que, no diálogo inicial, a Rainha questiona a filha sobre suas motivações e como Sarastro lhe tinha roubado o “círculo solar”. Pamina avisa à mãe que o sábio desejava repartir o poder do círculo solar com os iniciados, o que desperta definitivamente a fúria da Rainha da Noite.

Arde em meu peito a chama da vingança!
Com desespero!
Tu tens que odiá-lo assim também!
Vais me vingar!
Zarastro tu deves matar, sim!
Zarastro tu deves matar, sim!
Ou renegada tu serás por mim!

A imagem da noite, tanto para o misticismo quanto para o pensamento iluminista, indicava a relação antagônica com a verdade, que comumente é representada pelo sol ou pela luz. A Rainha da Noite, em “A Flauta Mágica”, não só atende aos requisitos de uma percepção negativa ou simplesmente maléfica, mas aponta para uma relação mais ambígua com o conhecimento. Há leituras que apontam a Rainha da Noite como uma representação da Igreja Católica, sendo a fonte do preconceito oriundo de um conhecimento pautado pela superstição e pela crença mística. Uma vez que o pensamento filosófico do século XVIII se representava como o pensamento das “luzes”, havia uma clara e objetiva contestação das “idades das trevas” protagonizadas pelo poder da Igreja durante a Idade Média. Enquanto a Rainha da Noite intenta contra os iniciados e contra o sábio Sarastro, ela tenta se opor à sabedoria racional, apelando aos sentimentos mais profundos que ela chama de “laços naturais” em sua segunda ária. O intuito de contraposição disposto pela própria obra de Schikaneder parece reforçar a influência iluminista contra os poderes aristocráticos e religiosos representados pela instituição católica na Europa. Entretanto, a noite também pode ser lida por uma tradição.

YASMIN ÖZKAN: Rainha da noite e FATMA SAID: Pamina

Devemos lembrar que essa obra não está apartada do período em que foi composta. O maniqueísmo é profundamente nítido nesse embate. As forças da Rainha da Noite conspiram contra a luminosidade do sábio Sarastro. Entretanto, devemos considerar que esses personagens não são puramente retratados de forma tão simplista. Afinal, sem a intervenção da Rainha da Noite, Tamino não seria colocado no caminho dos iniciados ao buscar resgatar Pamina, e o servo de confiança do sábio Sarastro era um homem corrupto que, no fim, irá se aliar à Rainha da Noite. Há nuances profundas na relação de poder entre esses polos. A noite não só representa a ignorância e a fúria, mas também as sombras que tentamos negar ou ocultar do nosso agir. Por fim, a rainha da noite é derrotada ao tentar invadir o templo dos iniciados, por uma força oculta, a providência divina que protege os iniciados e coroa a sabedoria ao fim da opera.

Gostou desse texto? Deixe suas palmas aqui (elas vão de 1 a 50).Referencias:

Referências e notas:

CAMINO, Rizzardo da. O ápice da pirâmide: literatura maçônica. 2.ed. São Paulo, SP: Madras, 2009.

¹O Rito Antigo e Primitivo de Memphis-Misraïm é um rito maçônico fundado em Nápoles , Itália em setembro de 1881 pela fusão de dois ritos mais antigos; o Rito de Misraïm e o Rito de Memphis , ambos fundados no século XVIII. O sistema é às vezes conhecido como “Maçonaria Egípcia” devido à invocação do simbolismo esotérico hermético , referenciando o Antigo Egito em seu sistema de graus.

² Alessandro, Conde de Cagliostro era o pseudônimo do viajante, ocultista, alquimista, curandeiro e maçom Giuseppe Giovanni Battista Vincenzo Pietro Antonio Matteo Balsamo. Figura muito controversa do século XVIII, Alexander Cagliostro, como é conhecido, tinha fama de ter poderes sobrenaturais.

Complementos:

--

--

Alberto Luiz

Doutorando em filosofia pela UFU, ouvinte de música indie. Um colecionador de histórias cotidianas. Escrevendo sobre filosofia, arte, e outros devaneios.