Macbeth — uma tragédia sobre um “dever-ser” e ambição.

Alberto Luiz
8 min readApr 24, 2024

--

Macbeth é uma tragédia do dramaturgo inglês William Shakespeare, sobre um regicídio e outros temas. Nessa semana comemoramos 460 anos de nascimento do dramaturgo e poeta inglês.

Macbeth: Ambição & Guerra, adaptação de 2015, com Michael Fassbender, Marion Cotillard

Os Mitos foram as primeiras formas organizadas de corresponder a certas angústias existenciais que perseguem a humanidade. Os signos que as grandes narrativas constroem e elevam ensinam aos homens sua natureza e suas possibilidades frente a um mundo hostil. E não há dúvida de que há uma íntima relação entre os mitos vindos da tradição oral e os mitos nascidos nos palcos do teatro. Hoje, revisitamos as grandes tragédias que nasceram e morreram no hábito do palco no processo de lançar luz sobre nossas angústias.

Um dos maiores nomes da literatura e do teatro mundial é, sem dúvida, William Shakespeare. No dia 23/04/2024, comemoramos 460 anos de nascimento desse grande gênio das letras. E aqui, vou me permitir escapar de todas as polêmicas sobre a existência ou não dessa figura. O que importa para este texto é a figura que se consolidou através de suas obras. E, para tanto, resolvi comentar um pouco sobre uma das minhas peças favoritas do autor. Suponho que muitas pessoas, graças à imagem catártica de um homem segurando um crânio e perguntando sobre si, tenham como principal referência da obra de Shakespeare o monólogo de Hamlet. Realmente, o monólogo de Hamlet é profundo. Entretanto, minha obra favorita não se passa entre as paredes do palácio da Dinamarca. Pelo contrário, tem como os campos da Escócia sua grande ambientação. Trata-se de Macbeth.

Macbeth, originalmente, é um texto escrito para o teatro, uma tragédia em cinco atos. A primeira edição conhecida de “Macbeth” foi publicada em 1623 numa coleção póstuma das peças de Shakespeare. No entanto, acredita-se que a peça tenha sido escrita e encenada pela primeira vez entre 1603 e 1607. A tragédia narra as ações de Macbeth e sua esposa, Lady Macbeth, após o mesmo receber bons presságios de três bruxas, que o tornariam rei da Escócia. Incentivado por sua esposa, decide cometer um regicídio. O que se desenrola a partir da morte do soberano da Escócia ilustra o clássico cenário de culpa, ganância e punição.

The Tragedy of Macbeth, adaptação da produtora A24. Em cena Denzel Washington e Frances McDormand, como Macbet e Lady Macbet

Particularmente, dois elementos me surpreendem na construção narrativa de Macbeth. Como foi descrito acima, a narrativa conta a tragédia de um homem que comete um crime e é punido por ele com a loucura e a morte. Bem, este parece ser um tema comum a qualquer obra da literatura que deseja, a seu modo, compensar um desequilíbrio moral que dá a tônica do seu drama. O mal deve sucumbir ao bem, a luz deve triunfar sobre as trevas, e assim a afirmação de valores morais deve aludir à construção de uma imagem positiva da luta constante pelo coração do ser humano.

Entretanto, a obra em questão tem entrelinhas que permitem intensificar o problema e apontar algumas forças que estão para além do bem e do mal, e que definem ainda algumas questões da humanidade contemporânea.

A primeira questão é sobre a identidade. Uma das questões fundamentais da reflexão existencial é justamente compreender “quem se é”, a questão fundamental do conhecer a si, para assim alcançar uma sabedoria maior. Nos termos antigos, a definição de quem é o indivíduo não representava dificuldade. Afinal, devemos lembrar que a ambientação do texto shakespeariano é no período de transição do medieval para a modernidade. Ou seja, ainda era muito forte o elemento designativo para cada indivíduo. Havia um propósito estabelecido para cada indivíduo nascido sob aquela cultura. Assim, a estrutura social era mantida. Não havia problemas na identidade do indivíduo.

O filho do carpinteiro seria carpinteiro, o nobre passava seus títulos para seus herdeiros, a função estava atrelada ao destino, e o destino de cada indivíduo estava ligado ao que ele era e quem deveria ser na pirâmide social da antiguidade. A liberdade angustiante de não ter referências externas para um desígnio interno é um problema do nosso contemporâneo. Bem, essa era a mentalidade que norteia a ação preliminar em Macbeth, e legitima o porque a palavra das bruxas representam um impacto tão grande para o nobre thane de Glamis.

As palavras das bruxas provocaram em Macbeth uma curiosidade, como ele seria alçado rei? A partir de qual feito o destino mudará a função e a identidade de quem ele era. Há uma pegadinha inocente que o personagem cai a partir das palavras das bruxas e é justamente a espera que é feita a partir da ação do destino. Ou seja, não havia problemas para o nobre Macbeth ser rei pelas graças do destino, o problema é como o destino agiria para colocá-lo no trono se ele não era destinado ao trono.

MACBETH — Um momento, oradoras imperfeitas. Falai-me mais um pouco. Pela morte de Sinel eu fiquei thane de Glamis. Mas, Cawdor, de que jeito? Vive o thane de Cawdor, gentil-homem muito próspero; e ser rei ultrapassa os horizontes da crença tanto ou mais do que ser Cawdor. Dizei de onde tirastes tão insólita notícia e por que causa nos fizestes parar nesta charneca desolada, com saudações proféticas? Intimo-vos a me falar. (Shakespeare, Macbeth, p. 7).

The Tragedy of Macbeth, adaptação da produtora A24. Em cena Denzel Washington

As palavras das bruxas lançam sobre a personagem uma tensão que antes não existia e, como consequência, alcançam a maior personagem feminina de Shakespeare, Lady Macbeth. Ela será peça fundamental para todo o processo de ascensão do marido e dela ao trono. Afinal, Macbeth, como um homem medieval, não vê problemas em ser agraciado pelo destino com um novo título, ou o trono da Escócia; o problema está sempre no caminho que ele tem que trilhar para alcançar esse novo posto, essa nova identidade que dirá a ele próprio quem ele é. É uma questão fundamental nas tragédias: o destino não informa o caminho, apenas a consequência dele. “Serás rei!”, “Matarás o pai e casarás com a mãe” — o destino é brutal não pelo fim de uma vida, mas pelas escolhas que levam o indivíduo ao ponto catártico de sua existência.

Até onde conheço, as personagens femininas de Shakespeare não têm muita relevância em suas peças; elas sempre estão orbitando os personagens e sofrendo com suas ações diretas e indiretas. No caso de Macbeth, temos uma personagem extremamente poderosa. Lady Macbeth é quem estabelece para o drama sua tônica da ação, pois é ela quem afirma a seu marido que não deveriam esperar o destino dar conta de sua ascensão, e sim que deveriam tomar com as próprias mãos o destino que foi profetizado. E é no diálogo entre eles que vemos o conflito das forças que compõem essa tragédia.

LADY MACBETH — Rouco está o próprio corvo que crocita a chegada fatídica de Duncan à minha fortaleza. Vinde, espíritos que os pensamentos espreitais de morte, tirai-me o sexo, cheia me deixando, da cabeça até aos pés, da mais terrível crueldade! Espessai-me todo o sangue; obstruí os acessos da consciência, porque batida alguma compungida da natureza sacudir não venha minha hórrida vontade, promovendo acordo entre ela e o ato. Ao feminino peito baixai-me, e fel bebei por leite, auxiliares do crime, de onde as vossas substâncias incorpóreas sempre se acham à espreita de desgraças deste mundo. Vem, noite espessa, e embuça-te no manto dos vapores do inferno mais sombrios, porque as feridas meu punhal agudo não veja que fizer, nem o céu possa espreitar através do escuro manto e gritar: “Pára! Pára!” (Shakespeare, Macbeth, p. 10)

Antes que Macbeth chegasse, sua esposa já havia tomado a decisão de manipular o destino e tornar concreto o que as bruxas tinham falado. Enquanto Macbeth oscila entre o que ele é e o que ele cobiça, sua esposa já tem tudo organizado e, para tanto, essas forças se encontram entre a ambição de um e o “dever-ser” de outro. A mentalidade medieval ainda impera na condição humana, que é sustentada no imaginário do mundo teatral da tragédia shakespeariana. A ruptura entre o desígnio que forma a ideia do sujeito e sua vontade é um tema recorrente na modernidade. E essa condição de conflito constitui o movimento estético do argumento da peça. Por fim, o “dever-ser” é vencido pelo desejo.

Lady Macbeth — [..] Tens medo de nos atos e coragem mostrar-te igual ao que és em teus anelos? Queres vir a possuir o que avalias como ornamento máximo da vida, mas qual poltrão viver em tua estima, deixando que um “Não ouso” vá no rasto de um “Desejara”, como o pobre gato de que fala o provérbio?

MACBETH — Paz, te peço. Ouso fazer tudo o que faz um homem; quem fizer mais, é que deixou de sê-lo. (Shakespeare, Macbeth, p. 12).

The Tragedy of Macbeth, adaptação da produtora A24. Em cena as tres bruxas.

Uma vez que a decisão é tomada e Macbeth e sua esposa põem em prática o plano, os caminhos da tragédia tornam-se claros, a um custo por abrir mão da referência do que se é, em nome da ambição. E o preço por violar os pactos de hospitalidade e respeitar a autoridade é alto. A loucura é a primeira face que se observa à medida que a culpa e o vazio de propósito se lançam na face de ambos os personagens dessa tragédia. É interessante quanto do ímpeto e da força do casal vão se tornando um peso sufocante do vazio de não ter mais referências do que se é; tudo é esvaziado e perde seu sentido.

Devemos lembrar que, para aquele momento, o agir devia estar em consonância com a identidade do indivíduo. Uma vez que a ação do personagem rompe esse elo fundamental entre o agir e certa percepção de si, as consequências são sempre amargas. Deve haver, para a natureza da vida humana, um elo entre o que somos e o que fazemos, pois as consequências da ação devem estar dentro de certa linha de expectativa.

Quando Macbeth toma o trono pelo regicídio, ele assume o lugar de assassino de seu parente e rei, não de uma identidade dignificada pela virtude. O assassinato leva às consequências de um modo de vida que não estava em consonância com o antigo thane de Glamis. A loucura e a morte seguem um novo modo de relacionar o poder e a vontade. À medida que o casal avança em consolidar o poder, eles afirmam sua tirania e o esvaziamento radical da vida simbolica que antes energizavam suas antigas vidas.

SEYTON — A rainha morreu, senhor.

MACBETH — Devia ter morrido mais tarde; então, houvera ocasião certa para tal palavra. O amanhã, o amanhã. Outro amanhã, dia a dia se escoam de mansinho, até que chegue, alfim, a última sílaba do livro da memória. Nossos ontens para os tolos a estrada deixam clara da empoeirada morte. Fora! apaga-te, candeia transitória! A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre cômico que se empavona e agita por uma hora no palco, sem que seja, após, ouvido; é uma história contada por idiotas, cheia de fúria e muita barulheira, que nada significa. (shakespeare, Macbeth, p. 45)

As forças que estabeleciam o antagonismo da tragédia são gradualmente direcionadas novamente para consertar o equilíbrio da natureza. Uma vez que Macbeth “ousou ser mais que um homem”, e com isso levou a ruina sua casa e seu nome, outro personagem ergue-se Macduff, para estabelecer uma nova ordem as relações de poder. As consequências são amargas para as personagens da tragédia, mas lição sobre a identidade e a ação são elementos fortes que o texto shakespeariano sustenta até os dias atuais.

Gostou desse texto? Deixe suas palmas aqui (elas vão de 1 a 50).

--

--

Alberto Luiz

Doutorando em filosofia pela UFU, ouvinte de música indie. Um colecionador de histórias cotidianas. Escrevendo sobre filosofia, arte, e outros devaneios.