O estrangeiro_Reloaded — potência e lucidez de um clássico atemporal

Dez anos após a primeira montagem, Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia retornam à obra-prima da literatura mundial O Estrangeiro, de Albert Camus. O espetáculo, com produção executiva de Sofia Papo, traz aos palcos do teatro o potencial dramático do texto literário de Albert Camus e demonstra com sofisticação um diálogo atemporal com as tensões existenciais do ser humano.

Alberto Luiz
5 min readMay 20, 2024

No ano de 1959, Albert Camus concedeu uma entrevista e proferiu uma das frases mais intensas sobre o ofício do ator e do teatro. Disse Camus: “Antes de tudo, acredito que o teatro é o lugar da verdade. Entretanto, dizem geralmente que é o de ilusões. Não acredite neles. É a sociedade que vive de ilusões.”¹ Camus não poderia estar mais correto em sua afirmação. Na relação sagrada entre o ator e o palco iluminado, revela-se a consciência de certas verdades que as ilusões do cotidiano tendem a abafar. Pois é sobre o sentido profundo da vida que Camus alude em seus textos. E esse sentido que buscamos desesperadamente apontar encontra nos gestos do Estrangeiro uma provocação bastante singular.

Essas reflexões me saltaram à consciência após assistir, no dia 16/05, à estreia e ao retorno de Guilherme Leme Garcia e Vera Holtz ao texto mais conhecido de Albert Camus. O Estrangeiro é, sem dúvida, o texto mais emblemático de Camus, e é por ele que muitos acessam a obra do autor franco-argelino. A obra, que originalmente foi publicada em Paris sob a ocupação dos nazistas em 1942, é o primeiro avanço do autor na concretização de sua reflexão sobre o absurdo e a condição humana. É uma obra que nasce em um período de profunda crise e que segue até os dias de hoje dialogando com os indivíduos. Foi muito impactante como a adaptação do texto literário para o palco do teatro não perdeu sua potência reflexiva.

Nas páginas do romance e no palco do teatro, encontramos um indivíduo irredutível ao seu público. Suas ações e palavras, carregadas de uma nítida apatia, estabelecem esse primeiro estranhamento. Afinal, quando tratamos com outros seres humanos, esperamos um certo conjunto de gestos, hábitos que comuniquem que há entre quem fala e quem ouve um elo de familiaridade. E aqui reside a grande potência de O Estrangeiro: Meursault é exterioridade pura. Não há jogos de palavras, não há intencionalidades, não há ambiguidades. Ele atua na completa ausência de familiaridade esperada de um herói ou de um vilão. Ele reage ao mundo enquanto o mundo cobra dele uma resposta familiar. Nossa mente necessita desses elementos: causa e efeito e familiaridade, e Meursault só apresenta a nós um aspecto de causalidade; os outros itens são revestidos de uma indiferença que, para nós, é embaraçosa.

Para a personagem, todas as coisas são equivalentes, e essa equivalência revela esse estrangeiro em confronto com um mundo simbólico no qual nós vivemos. Não há máscaras nesse personagem, e por isso nós o olhamos com estranhamento, pois estamos acostumados ao jogo simbólico das máscaras sociais, dos labirintos formais para estabelecer uma relação, dos grandes e mirabolantes argumentos lógicos para justificar uma ação. Para nossa disposição cultural, a aparente indiferença de Meursault pelas ilusões da sociedade é cortante.

Guilherme Garcia, foto: Gustavo Leme

E é justamente essa exterioridade que Camus, em certo momento, chamou de “loucura da sinceridade”². O indivíduo não é julgado pelo crime, mas por não corresponder ao que esperamos dele. Ora, a sociedade funciona sob pretextos e funções que nós somos impelidos a exercer. Queremos acreditar que o indivíduo deve corresponder a um propósito maior que ele, e a pergunta que ressoa é: o que fazemos quando um indivíduo não corresponde ao propósito que lhe é esperado? Há camadas e camadas de reflexões que se amontoam à medida que a indiferença não se revela um crime, mas uma realidade cortante.

O choque de forças é inevitável; entre o que esperamos do mundo e o que o mundo é, há um espaço de ausência, e o espetáculo representa essa ausência com uma potência empolgante. Estamos durante todo o tempo frente a frente com Meursault (Guilherme Leme Garcia) e as luzes do palco, que revelam as reações daquele indivíduo que se apresenta ao seu público quase como que seus confidentes, contando sua história. A atuação é cirúrgica, conseguindo estabelecer um tom singular ao personagem. Afinal, o homem em cena não é um indivíduo desprovido de sentimentos. Ele ama, ele deseja, ele teme, mas, à medida que suas emoções se revelam, todas elas são marcadas pela apatia. É um personagem denso e distante de nós, mas que não permite que a estranheza se converta em outra coisa que não fascínio.

E, à medida que a peça vai crescendo até o seu fim catártico, onde somos brindados pela suavidade e potência da interpretação dada ao personagem, não pude parar de lembrar da frase que abriu este texto: “O teatro é o lugar da verdade. É a sociedade que vive de ilusões.” Meursault é um grande espelho onde nossas “falácias sociais” são provocadas pela ausência de sentido profundo da existência. O estrangeiro não encontrou a felicidade nos gestos que impomos à vida para que ela seja familiar: os bens, o matrimônio, o julgamento, a vida eterna, as intenções simuladas, tudo isso não vale mais que “um fio de cabelo de mulher”. O que Meursault revela em sua louca sinceridade é que a felicidade pode ser de matéria mais simples: é o mar, o sal, o calor do sol, o corpo banhado pela brisa de verão. Nesse cenário natural, onde a existência se mescla à estética, o estrangeiro encontrava seu lar.

O estrangeiro, divulgação

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Alberto Luiz

Doutorando em filosofia pela UFU, ouvinte de música indie. Um colecionador de histórias cotidianas. Escrevendo sobre filosofia, arte, e outros devaneios.