Shōgun— uma reflexão sobre o tempo e a morte

Alberto Luiz
Impérios Sagrados
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9 min readMay 2, 2024

“Shōgun” é uma minissérie de drama histórico para a televisão baseada no romance homônimo de 1975, de James Clavell. Neste texto, desejo comentar dois elementos fundamentais para a narrativa da história e como eles são percebidos pelos personagens centrais da trama: a percepção do tempo e da morte, elementos marcantes e bastante distintos para o olhar ocidental.

Shinnosuke Abe & Anna Sawai in Shōgun (cena do chá).

Os Dramas históricos têm um apelo estético bastante forte. Quando vamos ao cinema assistir a “Napoleão” ou “Gladiador”, é quase um compromisso inconsciente que, ao lado de uma história de conteúdo épico, tenhamos a experiência de uma produção cuidadosa que reconstrua o ambiente, gestos e costumes da época em que a história está ambientada. Não é por acaso que, em produções de gosto duvidoso, os critérios técnicos comprometem a narrativa. Mas, sem dúvida, esse não é o caso de “Shõgun”, série de 2024 que adapta um romance homônimo e estabelece uma nova perspectiva sobre outra série de 1980 também homônima.

Não faltam na rede resenhas sobre o esmero da produção, o cuidado quase “artesanal” na construção do roteiro e da fotografia. É, com certeza, um esforço que eleva ainda mais a narrativa, que é um ponto alto dessa produção. É visível o cuidado e a vontade de adaptar o Período Sengoku¹ (1467–1615) no Japão, um período bastante conturbado da história da formação do país e suas relações externas. Mas o objetivo deste texto não é tecer um comentário técnico ou fazer uma resenha qualitativa sobre a produção, você pode encontrar facilmente na rede. Meu intuito aqui é refletir um pouco sobre como dois temas permeiam toda a narrativa e seus desdobramentos.

1. O olhar do estrangeiro.

Antes de entrar propriamente no tema que quero refletir, creio que seja importante, para dar continuidade à reflexão proposta, compreender de onde a linha narrativa parte. É essencial estabelecer, dessa forma, as escolhas dos personagens e da própria narrativa. Houve uma preocupação por parte da produção da série em estabelecer de forma clara se o Japão ambientado seria visto pelo olhar do estrangeiro que chega, ou pelos próprios habitantes daquelas terras.

O olhar sobre a cultura do outro é sempre um catalisador de energia narrativa, e muitas produções ocidentais fracassaram em seus objetivos ao partir justamente do olhar do estrangeiro. As caricaturas partem sempre de uma leitura externa da cultura do outro, e esse olhar tende naturalmente a circunscrever a leitura do observador sobre a história do outro. Acusamos as adaptações fracassadas de terem perdido a essência da história original ou outros elementos. É natural que exista o estranhamento de uma cultura para outra, as relações do ser humano com a natureza são pluralistas, e as formas como a cultura é percebida também são plurais. O que é prejudicial é quando o estrangeiro sufoca as vozes nativas da cultura e estabelece uma descrição externa sobre formas estéticas e conceitos.

Yoshii Toranaga (Hiroyuki Sanada), in Shōgun

“Shōgun” se esquiva desse problema. Toda a seriedade técnica envolvida na série é fruto justamente do fato de não ser uma história ocidental, não sendo contada pelas palavras do ocidental, do estrangeiro. O estrangeiro, no caso “Blackthorne”, o inglês que torna-se os olhos do espectador ocidental na trama, representa os olhos, o observador, nunca o narrador. Até mesmo nos momentos mais dramáticos do personagem, sua ação é sempre reativa às forças que estão ao seu redor. E isso colabora com a sensação de estranheza própria do estrangeiro que surge de uma terra muito desconhecida do mundo ocidental. A linguagem, os costumes e a forma de batalhar são todos, a princípio, recheados de estranheza aos olhos do espectador, mas a força narrativa não é ocidental.

Esse distanciamento dos vícios ocidentais em fazer narrativas dá a “Shōgun” sua própria linguagem estética e seu próprio tempo. É um deleite acompanhar as paisagens, os costumes, os mínimos gestos que exalam a propriedade cultural do povo em que a história e a cultura a narrativa percorrem. Se o marinheiro inglês “Blackthorne” na outra adaptação é o fio narrativo da história, aqui na versão de 2024, ele é o expectador. O Japão de Yoshii Toranaga (Hiroyuki Sanada) é quem estabelece o fio narrativo e o olhar pelo qual nós, estrangeiros, iremos sentir a estranheza dos detalhes de certos hábitos e percepções da cultura. Portanto, é a partir desse lugar de espectador e estrangeiro que desejo pensar como o Tempo e a Morte caminham nas entrelinhas da narrativa de Shōgun.

2. O tempo e a morte e o estranhamento narrativo.

Agora que defini a partir de qual perspectiva iremos ler a forma como a morte e o tempo estão sempre presentes na narrativa de Shōgun, e como os personagens vão se movendo entre esses dois temas. Afinal, o elemento de estranheza, ou que destoa em todo aquele cenário, é o marinheiro inglês, que logo é introduzido ao sistema social como um Hatamoto². É curioso como “Blackthorne” logo se torna Aijin e, posteriormente, um Hatamoto a serviço de Yoshii Toranaga (Hiroyuki Sanada), como uma forma de enquadrá-lo na forma estética e cultural e nos planos políticos do suserano. A chegada do navio inglês não deflagra a história, os pontos sensíveis que movimentam a história já estão se desenrolando, o que muda é que o observador, a partir daquele momento, é um estrangeiro.

O tema da morte abre a narrativa de Shōgun, e ela vai ser lida a partir do olhar dos cristãos, sejam protestantes ou católicos, e dos japoneses ligados à tradição e ao Xintoísmo³. A forma como a vida e a morte são apresentadas na série é marcada pela ideia de dever e honra. Diferente dos ocidentais, que pensam a morte como consequência do pecado e como oposição da vida, que é dádiva de “Deus”, os personagens japoneses têm a morte como parte integrada da própria natureza cíclica das formas da natureza. Morte e vida são faces da mesma forma que é a natureza. Não há para eles dicotomia entre esses fenômenos. Pior que a morte é a queda em desonra ou vergonha.

A vida é expressão de uma harmonia, e a morte é parte dessa harmonização com o destino de cada um. “A naturalidade” com que a morte é encarada parte dessa compreensão muito própria de uma leitura do Xintoísmo apresentada nos costumes dos personagens. O estranhamento de Blackthorne, como a morte é abraçada por alguns personagens como uma forma de “concretização do dever”, choca a sensibilidade ocidental que rejeita a condição da morte. Não se trata aqui de uma banalização da morte, mas de uma compreensão distinta sobre como o viver deve ser encerrado. Duas cenas retratam isso de forma bastante interessante: O jardineiro e o faisão podre, e a cena do chá entre Mariko e Buntaro.

Yoshii Toranaga (Hiroyuki Sanada), in Shōgun

A morte pelo dever e a morte como afirmação de um propósito marcam a forma como os personagens se relacionam com certas condições sombrias que as tensões políticas vão se estruturando. Para o jardineiro, a morte era um preço a ser pago para que a ordem pudesse ser reestabelecida na vila, e para Mariko e Buturo no chá, a morte tinha um peso amargo de uma desonra que foi imposta à personagem pelo marido. Como também as palavras tem um peso e uma responsabilidade. Não desejo entrar em detalhes para não estragar a experiência de quem não finalizou a série. Entretanto construção da cena é de uma beleza sutil onde os atores conseguem transmitir um peso e uma amargura profunda. O cena chá é uma boa ilustração de como a morte e o tempo são encarados nessa narrativa, dificilmente uma obra hollywoodiana dedicaria alguns minutos de cena de um longa para a sutileza dos gestos e das palavras apontam definitivamente o abismo existente entre a esposa e o marido em um quarto tomando chá.

O que é estranho em um primeiro momento para navegador inglês e tende a ser estranho para nós como a cultura japonesa retratada na série apresenta a morte na maior parte do tempo como uma força narrativa silenciosa. O Seppuku* é um bom exemplo de como abraçar a morte como cumprimento do dever e manutenção da honra em vida. Para aquele mundo é algo comum para aquele povo e, com o tempo, é também internalizado no “estrangeiro”. Morrer não é um problema quando o viver desonrado significa uma condição de sofrimento cotidiano. O arco de Mariko e Buturo representa essa condição drástica de forma profunda.

Anna Sawai como Toda Mariko, in Shōgun

Se a morte é um tema presente em toda a série, a forma como o tempo é percebido e apresentado também guarda profunda coerência com o mundo que está sendo retratado. E essa relação própria com a temporalidade destoa do épico como ele comumente é representado no Ocidente. Esperamos do jogo político a tensão e a explosão que dá a cada episódio seu gancho narrativo. Entretanto, a temporalidade aqui tem seu aspecto sutil; vemos a passagem do tempo nos detalhes e nos gestos que vão preenchendo cada momento.

Toranaga é o grande maestro dessa narrativa, e o tempo das coisas acompanha a paciência estratégica de um homem que tem seu tempo próprio para dar cada passo. Esperamos dele urgência, potência, mas não se trata das nossas expectativas enquanto estrangeiros; ali a morte e o tempo têm seu próprio compasso. O jovem é ansioso, o homem maduro tende a ser reservado; essa seria uma boa forma de representar como aqueles indivíduos conduzem suas ações. A calma é um aspecto de como o tempo representa um modo de vida próprio daquela cultura, e também afirma certos valores. Enquanto Blackthorne é descompensado, agitado, bruto, está sempre em descompasso com o silêncio e as formalidades daquela sociedade.

A sabedoria oriunda da consciência da unidade de todas as coisas imprime ao tempo e à morte sua face própria. Os ocidentais pensam o tempo como lucro, expansão de domínio. Toranaga e Mariko têm o tempo como seu ambiente de estratégia e manobra. Ao fim dos dez episódios, vemos a consagração da paciência e da estratégia em detrimento da ganância e da precipitação. Confesso que o compasso que Toranaga dá aos eventos tem um “quê” de angústia. Queremos a resolução imediata dos conflitos, mas o que o personagem deseja é, em grande parte do tempo, oculto pelos gestos e a formalidade. É uma lição que custa para o marinheiro inglês entender parcialmente. A impulsividade cobra seu preço, e não há sentido em falar sobre o futuro com os mortos.

Cosmo Jarvis, (John Blackthorne) & Anna Sawai (Toda Mariko), in Shōgun

Por fim, “Shōgun” é uma obra muito bem executada, com requinte e cuidado. Suas sutilezas, formas e construções configuram um mosaico plural de cenas belíssimas e uma história cativante que, ao mesmo tempo que causa certa estranheza, cativa e prende o espectador, seja pelos campos ou pelos corredores dos palácios. Há uma temperança mortal na camada superficial dos gestos e costumes que conseguem ocultar de forma eficiente as intenções, ou quase isso. É uma grande lição de como podemos contemplar a forma e a ação de uma cultura tão diferente da nossa.

Notas:

¹ O período Sengoku foi uma das fases mais conturbadas e instáveis da história do Japão, marcada por constantes guerras. Ocorreu entre a metade do século XV e o final do século XVI.

²Um hatamoto (旗本) era um samurai ao serviço direto do shogunato Tokugawa no Japão. Em Shōgun, John Blackthorne, recebe o titulo do proprio Toranaga, após o mesmo ser salvo por ele.

³ O xintoísmo se caracteriza pelo culto à natureza e aos espíritos ancestrais. Eles são reverenciados por meio de oferendas e orações realizadas em altares por todo Japão. A adoração tem por finalidade realizar pedidos de ajuda, promessas de atos no futuro ou a simples louvação para agradecimentos.

*O Seppuku era uma forma de suicídio tradicional do Japão feudal e, ao longo da história, foi utilizado pela classe guerreira japonesa (samurai) como uma forma de morrer de maneira honrosa e servindo ao seu mestre.

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Alberto Luiz
Impérios Sagrados

Doutorando em filosofia pela UFU, ouvinte de música indie. Um colecionador de histórias cotidianas. Escrevendo sobre filosofia, arte, e outros devaneios.